quinta-feira, 17 de março de 2011

A sócio-afetividade como entidade familiar

No Direito de Família, as relações jurídicas são identificadas através de três vínculos:

a) O vínculo conjugal, que une os cônjuges. Atualmente, além das relações conjugais, existem também aquelas fundadas na união estável;

b) O vínculo de parentesco;

c) O vínculo de afinidade.

Muitos autores destacam que parentesco e afinidade são vínculos que não se confundem, apesar de grande parte da doutrina civilística brasileira adotar terminologia que os equipara.

Como um dos maiores representantes da última corrente, temos o grande jurista Pontes de Miranda:.Parentesco é a relação que vincula entre si pessoas que descendem uma das outras, ou de autor comum (consangüinidade), que aproxima cada um dos cônjuges dos parentes do outro (afinidade), ou que se estabelece, por fictio iuris, entre o adotado e o adotante. (PONTES DE MIRANDA, Tratado de Direito de Família, Vol. III. 1ªedição, atualizada por Vilson Rodrigues Alves. Campinas: Bookseller, 2001, p. 23.)

Representando pensamento doutrinário diverso, que não admite a idéia de parentesco por afinidade, estão os ensinamentos de Arnoldo Wald:.A afinidade não é parentesco, consistindo na relação entre um dos cônjuges e os parentes do outro. É um vínculo que não tem a mesma intensidade que o parentesco e se estabelece entre sogro e genro, cunhados, etc.. (Arnoldo WALD. O novo Direito de família. 13ª edição revista e atualizada. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 34.),

O novo Código Civil, contudo, tal qual o Código Civil de 1916, não se preocupou em distinguir as noções de parentesco e afinidade, deixando de demarcar as importantes diferenças quanto aos efeitos jurídicos entre os dois conceitos.

O vínculo de parentesco abrange o parentesco de linha reta (ascendente e descendente), que é ilimitado, e o parentesco em linha colateral ou transversal. O parentesco na linha colateral, diferentemente do parentesco na linha reta, não é ilimitado. Ele ecorre da descendência de um único tronco comum, sem que exista relação de ascendência e descendência entre parentes.

Cumpre destacar que o artigo 332 do Código Civil de 1916 dispunha que: .o parentesco é legítimo ou ilegítimo, segundo procede, ou não, de casamento; natural, ou civil, conforme resultar de consangüinidade, ou adoção.

É de se ponderar que a inclusão da expressão .outra origem, em substituição ao termo adoção, traz uma nova classificação para as relações de parentesco. Além do parentesco natural e da adoção, temos relações de parentesco entre pessoas que não têm essas formas de vínculo, como, por exemplo, o que ocorre quando se lança mão de técnica de reprodução assistida heteróloga (vide art. 1.597, V).

Atualmente se consagram novos valores referentes ao vínculo de filiação, nos quais ganha contorno e conteúdo a idéia de que a paternidade e a maternidade não são apenas relações jurídicas, ou meramente biológicas, sendo fundamental a presença do afeto nas relações paterno-filiais.

Segundo o ilustre Professor Luiz Edson Fachin, a disciplina jurídica das relações de parentesco entre pais e filhos não atende, exclusivamente, quer valores biológicos, quer juízos sociológicos. É uma moldura a ser preenchida, não com meros conceitos jurídicos ou abstrações, mas com vida, na qual pessoas espelham sentimentos. Fachin nega um conceito unívoco de paternidade, revelando, através do significado plural das relações paterno-filiais, a ampliada dimensão e relevância da nova tendência do direito de família.

Têm-se, assim, no art. 1.593 do novo Código, elementos para a construção de um conceito jurídico de parentesco em sentido amplo, no qual o consentimento, o afeto e a responsabilidade terão papel relevante, numa perspectiva interdisciplinar.

Assim, em razão de uma série de fatores sociais, econômicos e jurídicos, o macro princípio da dignidade humana fecundou o novo Direito de Família, de sorte surgirem corolários seus como os princípios da paternidade responsável e da afetividade, pois “o afeto não é fruto da biologia”, 7 mas antes de um emaranhado de sentimentos que geram efeitos sociais que não podem ser desprezados pelo direito, a “parentalidade socioafetiva” ou, na inspiradora lição de JOÃO BATISTA VILLELA, “desbiologização da paternidade”.( PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Teoria da afetividade: do Brasil para o mundo (entrevista). In: Boletim IBDFAM, n. 16, ano 2, ago./set. de 2002, p. 3.).

O princípio da afetividade “não é petição de princípio, nem fato exclusivamente sociológico ou psicológico”( LOBO, Paulo Luiz Netto. Princípio jurídico da afetividade na filiação. In: PEREIRA, Rodrigo Cunha (coord.). Anais do II congresso brasileiro de direito de família: a família na travessia do milênio. Belo Horizonte: IBDFAM/OAB-MG/Del Rey, 2000, p. 245-253), tendo, portanto, fundamento constitucional originário na dignidade humana (CRFB/88, art. 1º, III) e na previsão do reconhecimento das espécies de entidades familiares (CRFB/88, art. 226, § 4º), da proteção à criança e ao adolescente (CRFB/88, art. 227) e da igualdade entre os filhos (CRFB/88, art. 227, § 6º).

O afeto talvez seja apontado, atualmente, como o principal fundamento das relações familiares. Mesmo não constando a palavra afeto no Texto Maior como um direito fundamental, podemos dizer que o afeto decorre da valorização constante da dignidade humana.

No que tange a relações familiares, a valorização do afeto remonta ao brilhante trabalho de João Baptista Vilella, escrito no início da década de 1980, tratando da desbiologização da paternidade. Na essência, o trabalho procurava dizer que o vínculo familiar seria mais um vínculo de afeto do que um vínculo biológico. Assim, surgiria uma nova forma de parentesco civil, a parentalidade socioafetiva, baseada na posse de estado de filho.

Sobre a valorização desse vínculo afetivo como fundamento do parentesco civil, ensina Paulo Luiz Netto Lôbo: “O modelo tradicional e o modelo científico partem de um equívoco de base: a família atual não é mais, exclusivamente, a biológica. A origem biológica era indispensável à família patriarcal, para cumprir suas funções tradicionais. Contudo, o modelo patriarcal desapareceu nas relações sociais brasileiras, após a urbanização crescente e a emancipação feminina, na segunda metade deste século. No âmbito jurídico, encerrou definitivamente seu ciclo após o advento da Constituição de 1988. O modelo científico é inadequado, pois a certeza absoluta da origem genética não é suficiente para fundamentar a filiação, uma vez que outros são os valores que passaram a dominar esse campo das relações humanas. Os desenvolvimentos científicos, que tendem a um grau elevadíssimo de certeza da origem genética, pouco contribuem para clarear a relação entre pais e filhos, pois a imputação da paternidade biológica não substitui a convivência, a construção permanente dos laços afetivos.

O biodireito depara-se com as conseqüências da dação anônima de sêmen humano ou de material genético feminino. Nenhuma legislação até agora editada, nenhuma conclusão da bioética apontam para atribuir a paternidade ao doador anônimo de sêmen. Por outro lado, a inseminação artificial heteróloga não tende a questionar a paternidade e a maternidade dos que a utilizaram, com material genético de terceiros. Situações como essas demonstram que a filiação biológica não é mais determinante, impondo-se profundas transformações na legislação infraconstitucional e no afazer dos aplicadores do direito, ainda fascinados com as maravilhas das descobertas científicas. Em suma, a identidade genética não se confunde com a identidade da filiação, tecida na complexidade das relações afetivas, que o ser humano constrói entre a liberdade e o desejo” (Princípio jurídico da afetividade na filiação. Disponível em: <http://www.ibdfam.com.br/public/artigos.aspx?codigo=109).

Como nós, entende o autor que o princípio da afetividade tem fundamento constitucional, particularmente na dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da CF/1988), na solidariedade social (art. 3º, I, da CF/88) e na igualdade entre filhos (art. 5º, caput, e art. 227, § 6º, da CF/1988). Assim, em síntese, conclui o renomado autor alagoano, um dos fundadores do Instituto Brasileiro do Direito de Família (IBDFAM), que: “Impõe-se a distinção entre origem biológica e paternidade/maternidade. Em outros termos, a filiação não é um determinismo biológico, ainda que seja da natureza humana o impulso à procriação. Na maioria dos casos, a filiação deriva-se da relação biológica; todavia, ela emerge da construção cultural e afetiva permanente, que se faz na convivência e na responsabilidade.

No estágio em que nos encontramos, há de se distinguir o direito de personalidade ao conhecimento da origem genética, com esta dimensão, e o direito à filiação e à paternidade/maternidade, nem sempre genético. O afeto não é fruto da biologia. Os laços de afeto e de solidariedade derivam da convivência e não do sangue. A história do direito à filiação confunde-se com o destino do patrimônio familiar, visceralmente ligado à consangüinidade legítima. Por isso, é a história da lenta emancipação dos filhos, da redução progressiva das desigualdades e da redução do quantum despótico, na medida da redução da patrimonialização dessas relações”. (Princípio jurídico da afetividade na filiação, cit.)

A defesa da aplicação da paternidade socioafetiva, hoje, é muito comum entre os atuais doutrinadores do Direito de Família. Tanto isso é verdade que, na I Jornada de Direito Civil, promovida pelo Conselho da Justiça Federal sob a chancela do Superior Tribunal de Justiça, foi aprovado o Enunciado nº 103, com a seguinte redação: “O Código Civil reconhece, no art. 1.593, outras espécies de parentesco civil além daquele decorrente da adoção, acolhendo, assim, a noção de que há também parentesco civil no vínculo parental proveniente quer das técnicas de reprodução assistida heteróloga relativamente ao pai (ou mãe) que não contribuiu com seu material fecundante, quer da paternidade socioafetiva, fundada na posse do estado de filho”.

Na mesma Jornada, aprovou-se o Enunciado nº 108, prevendo que: “No fato jurídico do nascimento, mencionado no art. 1.603, compreende-se à luz do disposto no art. 1.593, a filiação consangüínea e também a socioafetiva”. Em continuidade, na III Jornada de Direito Civil, idealizada pelo mesmo STJ e promovida em dezembro de 2004, foi aprovado o Enunciado nº 256, pelo qual “a posse de estado de filho (parentalidade socioafetiva) constitui modalidade de parentesco civil”.

Na jurisprudência nacional, o princípio da afetividade vem sendo muito bem aplicado, com o reconhecimento da parentalidade socioafetiva, predominante sobre o vínculo biológico.

“NEGATÓRIA DE PATERNIDADE - ADOÇÃO À BRASILEIRA - CONFRONTO ENTRE A VERDADE BIOLÓGICA E A SOCIOAFETIVA - TUTELA DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA - PROCEDÊNCIA - DECISÃO REFORMADA

1. A ação negatória de paternidade é imprescritível, na esteira do entendimento consagrado na Súmula nº 149/STF, já que a demanda versa sobre o estado da pessoa, que é emanação do direito da personalidade. 2. No confronto entre a verdade biológica, atestada em exame de DNA, e a verdade socioafetiva, decorrente da adoção à brasileira (isto é, da situação de um casal ter registrado, com outro nome, menor, como se deles filho fosse) e que perdura por quase quarenta anos, há de prevalecer à solução que melhor tutele a dignidade da pessoa humana. 3. A paternidade socioafetiva, estando baseada na tendência de personificação do direito civil, vê a família como instrumento de realização do ser humano; aniquilar a pessoa do apelante, apagando-lhe todo o histórico de vida e condição social, em razão de aspectos formais inerentes à irregular adoção à brasileira, não tutelaria a dignidade humana, nem faria justiça ao caso concreto, mas, ao contrário, por critérios meramente formais, proteger-se-ia as artimanhas, os ilícitos e as negligências utilizadas em benefício do próprio apelado.” (Tribunal de Justiça do Paraná, Apelação Cível nº 0108417-9, de Curitiba, 2ª Vara de Família, DJ 04.02.2002, Relator Accácio Cambi)

“AÇÃO NEGATÓRIA DE PATERNIDADE - ADOÇÃO À BRASILEIRA - PATERNIDADE SOCIOAFETIVA

O registro de nascimento realizado com o ânimo nobre de reconhecer a paternidade socioafetiva não merece ser anulado, nem deixado de se reconhecer o direito do filho assim registrado. Negaram provimento.” (Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, RO-Proc. 00502131-70003587250, , Relator Rui Portanova, Origem Rio Grande, Data 21.03.2002)

Para nós, o princípio da afetividade é importantíssimo, pois quebra paradigmas, trazendo a concepção da família de acordo com o meio social. É sobre o princípio da função social da família que passamos a expor, para encerrar este breve trabalho.

“A igualdade entre filhos biológicos e adotivos implodiu o fundamento da filiação na origem genética. A concepção de família, a partir de um único pai ou mãe e seus filhos, eleva-os à mesma dignidade da família matrimonializada. O que há de comum nessa concepção plural de família e filiação é a relação entre eles fundada no afeto.”( LOBO, Paulo Luiz Netto. Princípio jurídico da afetividade na filiação. Jus Navigandi, Teresina, a. 4, n. 41, maio 2000. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=527).

Outro tipo de entidade familiar, apreciada pelo STJ, tutelada pelo art. 226 da Constituição, é a comunidade constituída por parentes, especialmente irmãos. Veja-se o seguinte julgado (REsp 159.851/SP, DJ 22.06.1998):

“EXECUÇÃO - Embargos de terceiro. Lei nº 8.009/90. Impenhorabilidade. Moradia da família. Irmãos solteiros.

Os irmãos solteiros que residem no imóvel comum constituem uma entidade familiar e por isso o apartamento onde moram goza de proteção de impenhorabilidade, prevista na Lei nº 8.009/90, não podendo ser penhorado na execução de dívida assumida por um deles.”

Assim, a entidade familiar tem como finalidade unir todos os entes sanguineos, bem como aqueles unidos pela sócio-afetividade, o que torna igualitário as relações estabelecidas no seio da família e sucessões.

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