sábado, 2 de abril de 2011

O Direito Alternativo como Instrumento Técnico

Ao juiz, compete-lhe aplicar o Direito, não sendo este, adstrito a nenhuma prova, todavia, o Direito Brasileiro ressalva que o juiz deve utilizar e deixar prevalecer as normas legais, conforme preceitua o artigo 126 do Digesto Processual Civil.

A lei, como mero critério de apreciação do direito, depende, dentre outros motivos, da índole, do costume de um determinado povo e, também, da época em que o fato se consubstancia, porém, “a melhor interpretação da lei é a que se preocupa com a solução justa, não podendo o seu aplicador esquecer que o rigorismo na exegese dos textos legais pode levar a injustiças” (RSTJ 4/1.554 e STJ-RT 656/188).

No RSTJ 26/378, o Min. Sálvio de Figueiredo leciona que: “a interpretação das leis não deve ser formal, mas sim, antes de tudo, real, humana, socialmente útil. E diz ainda, se o juiz não pode tomar liberdades inadmissíveis com a lei, julgando “contra legem”, pode e deve, por outro lado, optar pela interpretação que mais atenda às aspirações da Justiça e do bem comum”.

Entretanto, com todo o pequeno esboço supra, cabe atentar para a questão que paira no ordenamento jurídico recente, como o juiz pode interpretar a lei de forma real, humana e socialmente útil com tantos fatos memoráveis absurdos em que deparamos-nos a cada folheada de jornal???

Ao passo da interpretação “contra legem”, surge o julgamento por equidade, também proibido pela legislação vigente, salvo quando autorizado por lei, ou seja, não pode o juiz substituir a aplicação do direito objetivo utilizando seus critérios pessoais de justiça, e são nessas proibições que vem surgindo o movimento alternativista, ou como também é conhecido, jurisprudência alternativa.

Esse movimento surgiu na época da chamada Escola do Direito Livre, impulsionada pelo francês Paul Magnaud, lá pelos idos de 1900, reconhecido por ser um magistrado benevolente e condescendente protegendo os reconhecidamente mais pobres e verberando os abonados, assim, possui o cunho de defender os menos prestigiados pela sociedade, de forma a dar-lhes aquilo a que lhe realmente pertence..

Tal movimento chegou ao Brasil, trazidos por magistrados do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul e tem como impulsão o poder do magistrado de decidir, principalmente, conforme suas âmagas convicções ou ainda com o uso alternativo do Direito.

Outrossim, podemos analisar a seguinte assertiva como fundamento do Direito Alternativo: o homem deve viver em sociedade vivendo honestamente, não lesando a ninguém e dando a cada um o que é seu.

Normalmente, o julgador se depara com situações que lhe deixam perplexos, é quando ocorre um fato aparentemente previsto na legislação, mas dentre suas facetas, acaba se defrontando com os princípios que norteiam a justiça, todavia, para a solução da lide, o juiz utiliza o seu senso comum para dirimir questões como a citada.

Não posso deixar de citar o que o Juiz de Direito, Adalberto Narciso Hommerding, relatou no livro "Valores, Processos e Sentença, quando diz que "na condução de um processo e na elaboração de uma sentença, o momento de priorizar os valores depende do caso concreto. Às vezes é preciso deixar de lado o valor legalidade, o valor logicidade, e primar pelo valor ético, valor Justiça, valor dignidade da pessoa humana."

Oportuno trazer a lição de RICARDO JOSÉ ENGEL, esclarecendo que:

“Ressalta-se que a condição humana é o núcleo referencial para toda a axiologia jurídica, eis que o ser humano é o protagonista da vida, do Direito. Desta forma, o princípio da dignidade da pessoa humana pode ser considerado como princípio central e estruturante de todas as ordens jurídicas contemporâneas.”[1]

De sorte, todos os ensinamentos se reunem com o pensamento de Aristóteles, qual seja, de que o conteúdo das leis é a justiça, muito embora este filósofo tenha se preocupado com a aplicação da lei ao caso concreto, e sugeriu a eqüidade como forma de abrandar os rigores desta última.

Já o mestre Miguel Reale, diz que o Direito não se acha inteiramente condicionado pela historia; nem tudo é histórico e contingente no Direito, pois possui um núcleo resistente, uma constante axiológica, invariável no curso da Historia.

O Direito Alternativo faz criticas ao formato tradicional da administração da justiça e o vínculo histórico estreito que há entre Direito e poder estatal. O direito alternativo também surgiu como crítica ao dogmatismo jurídico, amplamente predominante nas escolas de Direito. Também é o caso dos estudos sociológicos, que apontaram para a inoperância do Poder Judiciário em relação aos direitos coletivos, difusos e às violações dos direitos humanos. Essa tendência crítica reforçou a necessidade de garantir o Estado de Direito e estendê-lo à população que mais necessita acesso à justiça.[2]

O Direito Alternativo é a união de concepções teóricas e as práticas jurídicas que contrariam à visão e à maneira corrente de se entender e exercitar o Direito.

“Ao mandamento da isenção do Direito responde o Direito Alternativo com a idéia de que toda concepção de Direito e toda prática jurídica é política, serve à conservação das estruturas sociais, ou é instrumento de denúncia dessas estruturas e de busca de sua transformação.

Ao dogma da “igualdade de todos perante a lei” contrapõe o Direito Alternativo a afirmação da desigualdade perante a lei, vigente numa sociedade economicamente desigual.

O Direito Alternativo é um convite para tudo ver com novos olhos, talvez com olhos de criança. Com olhos ao contaminados pelos interesses envolventes. Mas com cérebro adulto, capaz de enfrentar as incertezas e não se perder, enredado pelos sofismas dos que, muitas vezes, não defendem apenas uma concepção teórica e acadêmica de Direito. Com seus dogmas, defendem a ordem a que esse Direito serve, uma ordem-desordem. É ordem-desordem porque excludente de seres humanos. É “ordem” marginalizadora de vidas que têm, em sim mesmas, um valor transcendente.

Ao comodismo dos que se protegem de qualquer compromisso com a transformação social, sob o argumento de serem fiéis cumpridores da lei, responde, com ênfase, o Direito Alternativo. Construir um mundo novo, suprimir as injustiças estruturais, ouvir o clamor dos deserdados da lei, submeter a pauta legal a uma interpretação intervencionista, crítica, política – é dever ético do jurista”.[3]

Dentro do movimento do Direito Alternativo, temos quatro formas de utilização do mesmo, qual sejam:

a) O Positivismo de combate que visa dar maior eficiência aos direitos individuais e coletivos descritos nos textos legais e que não são aplicados em favor das classes desfavorecidas, ou seja, um tipo de legalidade sonegada.

b) O Uso Alternativo do Direito que é o reconhecimento da lei como método de julgamento, mas não o único, se a utilização do juiz não for suficiente para atingir os anseios da sociedade, deve ele, buscar a justiça, de forma a adotar medidas que visem dar uma solução justa ao caso concreto.

c) O Jusnaturalismo, que tem como preceito fundamental, a aplicação irrestrita dos direitos básicos, dentre os quais destacam-se, o direito à vida e à liberdade.

d) O Direito Insurgente ou “direito achado na rua”, que é a criação de um direito pela sociedade a ser aplicada nos casos de lacuna ou injustiça do direito estatal.

Atualmente, poucos magistrados se dispõem a dizer que são adeptos ao movimento alternativista, mas podemos resgatar trechos de inúmeras sentenças que prosperam o principal intento que visa tal movimento.

Feliz o exemplo do magistrado Rafael Gonçalves de Paula, da comarca de Palmas/TO, ao julgar dois acusados de furtar melancias. “Para conceder a liberdade aos indiciados, eu poderia invocar inúmeros fundamentos: os ensinamentos de Jesus Cristo, Buda e Gandhi, o Direito Natural, o princípio da insignificância ou bagatela, o princípio da intervenção mínima, os princípios do chamado Direito alternativo, o furto famélico, a injustiça da prisão de um lavrador e de um auxiliar de serviços gerais em contraposição à liberdade dos engravatados que sonegam milhões dos cofres públicos, o risco de se colocar os indiciados na Universidade do Crime (o sistema penitenciário nacional), poderia sustentar que duas melancias não enriquecem nem empobrecem ninguém.

Poderia aproveitar para fazer um discurso contra a situação econômica brasileira, que mantém 95% da população sobrevivendo com o mínimo necessário. Poderia brandir minha ira contra os neo-liberais, o Consenso de Washington, a cartilha demagógica da esquerda, a utopia do socialismo, a colonização européia, poderia dizer que George W. Bush joga bilhões de dólares em bombas na cabeça dos iraquianos, enquanto bilhões de seres humanos passam privação na Terra — e aí, cadê a Justiça nesse mundo?

Poderia mesmo admitir minha mediocridade por não saber argumentar diante de tamanha obviedade. Tantas são as possibilidades que ousarei agir em total desprezo às normas técnicas: não vou apontar nenhum desses fundamentos como razão de decidir. Simplesmente mandarei soltar os indiciados. Quem quiser que escolha o motivo.”[4]

Assim, a idéia principal deste escrito é atentar para o fato de que existe outras técnicas de utilização dos métodos de solução dos conflitos da vida em sociedade, que busca a o preceito fundamental do Direito. “ Ser Justo e buscar a tão almejada JUSTIÇA”.


[1] ENGEL, Ricardo José. O jus variandi no contrato individual de trabalho. São Paulo: LTr, 2003, p. 32.

[2] A reforma do Poder Judiciário e as várias iniciativas que se encaminham na direção do acesso à justiça são indicadores importantes desta tendência contemporânea. O tema da cidadania também ganhou destaque nos últimos anos. Ver BAJER, Paula. Processo penal e cidadania. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002; e CARVALHO, José Murilo. Cidadania no Brasil. O longo caminho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.

[3] Texto extraído do artigo de João Baptista Herkenhoff, publicado no Jornal Correio Braziliense.

[4] Autos nº 124/2003, Juiz Rafael Gonçalves de Paula, 3ª Vara Criminal da Comarca de Palmas, 05/09/2003.

sábado, 26 de março de 2011

O princípio da boa-fé objetiva

Neste trabalho, será analisado o principio da boa-fé objetiva, tanto no âmbito civil quanto no âmbito consumerista. A boa-fé objetiva é um principio incorporado aos contratos, portanto, tem moradia regular na área jurídica.

Para o Ministro Ruy Rosado de Aguiar, boa-fé é "um princípio geral de Direito, segundo o qual todos devem comportar-se de acordo com um padrão ético de confiança e lealdade. Gera deveres secundários de conduta, que impõem às partes comportamentos necessários, ainda que não previstos expressamente nos contratos, que devem ser obedecidos a fim de permitir a realização das justas expectativas surgidas em razão da celebração e da execução da avença".

Pode-se dizer que a boa-fé objetiva consiste na criação de deveres subentendidos, ou seja, não previsto nos contratos. Enquanto isso, a boa-fé subjetiva trata sobre a lealdade das partes, repercutindo na interpretação dos contratos.

A boa-fé objetiva nasceu no Código Civil Alemão, que determinava um modelo de conduta. Cada pessoa deve agir com honestidade, lealdade e probidade. Já a boa-fé subjetiva, por outro lado, vem do estado de consciência de cada ser racional, a intenção do sujeito da relação jurídica, seu estado psicológico ou intima convicção. Para sua correta analise, deve-se verificar a existência de situação regular, ignorância escusável ou convencimento do próprio direito.

Seguindo o entendimento de Roberto Basilone Leite, ele diz que “a boa-fé contratual é uma exigência ético-jurídica do antigo direito romano, legada ao nosso direito civil por intermédio do Código Napoleônico. Ela sempre mereceu destaque nos estudos de ética jurídica e inspirou todas as legislações democráticas.”

Para César Fiuza, “A boa-fé objetiva baseia-se em fatos de ordem objetiva. Baseia-se na conduta das partes, que devem agir com correção e honestidade, correspondendo à confiança reciprocamente depositada. As partes devem ter motivos objetivos para confiar uma na outra.”

Continuando com o entendimento de César Fiuza, “O princípio tem funções interpretativas, integrativa e de controle. Em sua função interpretativa, o princípio manda que os contratos devam ser interpretados de acordo com seu sentido objetivo aparente, salvo quando o destinatário conheça a vontade real do declarante. Quando o próprio sentido objetivo suscite dúvidas, deve ser preferido o significado que a boa-fé aponte como o mais razoável. Segundo a função integrativa, percebe-se que o contrato contém deveres, poderes, direitos e faculdades primários e secundários. São eles integrados pelo princípio da boa-fé. Em sua função de controle, o princípio diz que o credor, no exercício de seu direito, não pode exceder os limites impostos pela boa-fé, sob pena de proceder ilicitamente. A função de controle tem a ver com as limitações da liberdade contratual, da autonomia da vontade em geral e com o abuso de direito.”

Segundo preceitua o Mestre Nelson Rosenvald, a boa-fé objetiva se caracteriza “(...) por uma atuação de acordo com determinados padrões sociais de lisura, honestidade e correção, de modo a não frustrar a legítima confiança da outra parte (...)”.

O princípio da boa-fé contratual diz respeito à boa-fé objetiva. É dever imposto às partes agir de acordo com certos padrões de correção e lealdade.”

Para a professora Judith Martins Costa (In A Boa-Fé no Direito Privado, editora Revista dos Tribunais, São Paulo/SP, 1999, p. 34):

“Condutas eticamente inadmissíveis, embora conformes à “letra” da lei, serão acolhidas, nos tribunais, pela ausência ao recurso, por exemplo, ao princípio, decorrente da boa-fé objetiva, que proíbe venire contra factum proprium, irredutível, na sua aplicação, ao raciocínio silogístico”.

Destaca-se que a expressão latina venire contra factum proprium, podemos traduzir como “exercício de uma posição jurídica em contradição com o comportamento exercido anteriormente pelo exercente”, o que evidencia a quebra da relação de confiança entre as partes quando realizam uma convenção.

Novamente, para melhor ensinamento, colaciono os ensinamentos doutrinários de Judith Martins Costa quanto à diferença entre boa-fé subjetiva e objetiva:

“A expressão ‘boa-fé subjetiva’ denota "estado de consciência", ou convencimento individual de obrar (a parte) em conformidade ao direito (sendo) aplicável, em regra, ao campo dos direitos reais, especialmente em matéria possessória". Diz-se ‘subjetiva’ justamente porque, para a sua aplicação, deve o intérprete considerar a intenção do sujeito da relação jurídica, o seu estado psicológico ou íntima convicção. Antitética à boa-fé subjetiva está a má fé, também vista subjetivamente como a intenção de lesar a outrem.

Já por ‘boa-fé objetiva’ se quer significar - segundo a conotação que adveio da interpretação conferida ao parágrafo 242 do Código Civil Alemão, de larga força expansionista em outros ordenamentos, e, bem assim, daquela que lhe é atribuída nos países da common law - modelo de conduta social, arquétipo ou standard jurídico segundo o qual ‘cada pessoa deve ajustar a sua própria conduta a esse arquétipo, obrando como obraria um homem reto: com honestidade, lealdade, probidade’. Por este modelo objetivo de conduta levam-se em consideração os fatores concretos do caso, tais como o status pessoal e cultural dos envolvidos, não se admitindo uma aplicação mecânica do standard, de tipo meramente subsuntivo.

A boa-fé objetiva, seguindo estes entendimentos doutrinários forma-se a partir de uma atuação de pensamento bilateral, onde cada pactuante age com lealdade, sem causar lesão ou desvantagem ao outro, cumprindo o interesse mor que é a realização dos interesses das partes.

O Estatuto consumerista brasileiro obriga à todos os envolvidos pela relação de consumo a obrigação agirem com boa-fé, com o objetivo de atingir os princípios do artigo 4º, quais sejam, o atendimento das necessidades do consumidor, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria de sua qualidade de vida, a transparência e a harmonia das relações de consumo.

A boa-fé regra a conduta de cada ser, com o intuito de frear as pessoas que querem agir com má-fé e sim a forçá-los a agir lealmente, a exercitar os seus direitos contratuais, negando uma suposta vantagem excessiva ou a lesão do parceiro contratual.

Segundo a ilustre Claudia Lima Marques, “A relação contratual não libera os contraentes de seus deveres de agir conforme a boa-fé e os bons costumes, ao contrário, a vinculação contratual os impõem, os reforçam.”

Ensina Orlando Gomes, que: "nos contratos, há sempre interesses opostos das partes contratantes, mas sua harmonização constitui o objetivo mesmo da relação jurídica contratual. Assim, há uma imposição ética que domina a matéria contratual, vedando o emprego da astúcia e da deslealdade e impondo a observância da boa-fé e lealdade, tanto na manifestação da vontade (criação do negócio jurídico) como, principalmente, na interpretação e execução do contrato"

O Código de Defesa do Consumidor, transmite uma incomensurável contribuição no que tange as relações contratuais no Brasil e a positivação do princípio da boa-fé objetiva, como linha de interpretação, em seu art. 4º, III e como cláusula geral, em seu art. 51, IV, legalizando em suas normas, vários deveres que perseguem uma relação contratual justa.

O primeiro e mais vislumbrado das obrigações contratuais previstas no Código do Consumidor é o dever de informar

Este dever já é encontrado na fase de tratativas entre o consumidor e o fornecedor, quando o consumidor escolhe, por exemplo, o material de acabamento para a sua residência, qual o plano de saúde deverá proteger sua família pelos próximos anos, tipo, quais são as carências e as exclusões de cada tipo de plano etc. Neste ponto as informações se tornam os alicerces para a decisão do consumidor e não deve haver qualquer informação que levem o consumidor a erro, desde que as informações sejam relevantes.

Para Claudia Lima Marquez, “Esta inversão de papéis, isto é, a imposição pelo CDC ao fornecedor do dever de informar sobre o produto ou serviço que oferece (suas características, seus riscos, sua qualidade) e sobre o contrato que vinculará o consumidor, inverteu a regra do “caveat emptor” (que ordenava ao consumidor uma atitude ativa: se quer saber detalhes sobre o plano de saúde, informe-se, descubra o contrato registrado em cartório no Rio de Janeiro ou São Paulo... atue ou nada poderá alegar) para a regra do "caveat vendictor" (que ordena ao vendedor ou corretor de planos de saúde que informe sobre o conteúdo desse, riscos, exclusões, limitações etc). Estabeleceu-se, assim, um novo patamar de conduta, de respeito no mercado, que não admite mais sequer o dolus bonus do vendedor, do atendente, do representante autônomo dos fornecedores, face ao dever legal.”

O segundo principio de obrigação contratual o dever de Cooperação, ou seja, de colaborar durante a execução do contrato, conforme o paradigma da boa-fé objetiva, agindo com lealdade e não obstruir ou impedir.

Por exemplo, quando o consumidor necessite cumprir com suas obrigações perante ao fornecedor, e este dificulta o pagamento do consumidor, ao estabelecer situações que comprometam o cumprimento do avençado

Em seu artigo 51, o legislador declara como nulas de pleno direito as cláusulas contratuais que estabeleçam condições abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada.

Portanto, viola o principio da boa-fé objetiva, a cláusula contratual que exonere o fornecedor da responsabilidade por defeito do produto, a que subtraia do consumidor a opção de reembolso de quantia já paga, a que transfira a terceiros a responsabilidade do fornecedor, a que estabeleça obrigação abusiva ou excessivamente onerosa para o consumidor, a que estabeleça inversão do ônus da prova em prejuízo do consumidor, a que atribua ao fornecedor poderes tais que agravem a situação de inferioridade contratual do consumidor, a que possibilite a violação de normas ambientais e, por fim, qualquer cláusula que esteja em desacordo como sistema de proteção ao consumidor, a critério do juiz ao qual o litígio for submetido.

Por fim, colaciona o entendimento da Juíza de Direito Doutora Cristiane Hoppe, em sentença proferida no processo número 112/1.03.0000695-0, na comarca de Não-Me-Toque:

“(....)

As relações contratuais devem ser pautadas pelo princípio da boa-fé objetiva, segundo o qual se mostra inadmissível a alteração unilateral do contrato, sem ao menos cientificar de maneira clara e precisa o outro contratante.

Assim determina o Novo Código Civil, em seu art. 422:

‘os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios da probidade e boa-fé’.

Este princípio da boa-fé e da probidade está ligado não só à interpretação do contrato, pois, segundo ele, o sentido literal da linguagem não deverá prevalecer sobre a intenção inferida na declaração de vontade das partes, mas também ao interesse social de segurança das relações jurídicas, uma vez que as partes têm o dever de agir com lealdade e confiança recíprocas, isto é, proceder com boa-fé tanto na conclusão do contrato como em sua execução, impedindo que uma dificulte a ação da outra.

A proteção da boa-fé e da confiança despertada formam a base do tráfico jurídico, a base de todas as vinculações jurídicas, o princípio máximo das relações contratuais. A boa-fé objetiva e a função social do contrato são como salvaguardas das injunções do jogo do poder negocial.”

Ante ao exposto, a função do principio da boa-fé objetiva, tanto nos contratos existentes no Código Civil quanto os existentes no Código do Consumidor é de um princípio que limita a autonomia da vontade, criando novas obrigações contratuais para ambos os pactuantes, que deve contar, para sua maior efetividade, com sua previsão legal específica.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

n Aguiar, Ruy Rosado de - Estudos sobre a proteção do consumidor no Brasil e no Mercosul

n Leite, Roberto Basilone - Introdução ao direito do consumidor

n Fiúza, César - Direito civil: curso completo

n Rosenvald, Nelson - Direito das Obrigações, 2004.

n Marques, Cláudia Lima - Contratos no Código de Defesa do Consumidor - 3ª edição.

n Gomes, Orlando - Contratos. 18ª edição, Forense, Rio de Janeiro, 1998.

quinta-feira, 17 de março de 2011

A sócio-afetividade como entidade familiar

No Direito de Família, as relações jurídicas são identificadas através de três vínculos:

a) O vínculo conjugal, que une os cônjuges. Atualmente, além das relações conjugais, existem também aquelas fundadas na união estável;

b) O vínculo de parentesco;

c) O vínculo de afinidade.

Muitos autores destacam que parentesco e afinidade são vínculos que não se confundem, apesar de grande parte da doutrina civilística brasileira adotar terminologia que os equipara.

Como um dos maiores representantes da última corrente, temos o grande jurista Pontes de Miranda:.Parentesco é a relação que vincula entre si pessoas que descendem uma das outras, ou de autor comum (consangüinidade), que aproxima cada um dos cônjuges dos parentes do outro (afinidade), ou que se estabelece, por fictio iuris, entre o adotado e o adotante. (PONTES DE MIRANDA, Tratado de Direito de Família, Vol. III. 1ªedição, atualizada por Vilson Rodrigues Alves. Campinas: Bookseller, 2001, p. 23.)

Representando pensamento doutrinário diverso, que não admite a idéia de parentesco por afinidade, estão os ensinamentos de Arnoldo Wald:.A afinidade não é parentesco, consistindo na relação entre um dos cônjuges e os parentes do outro. É um vínculo que não tem a mesma intensidade que o parentesco e se estabelece entre sogro e genro, cunhados, etc.. (Arnoldo WALD. O novo Direito de família. 13ª edição revista e atualizada. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 34.),

O novo Código Civil, contudo, tal qual o Código Civil de 1916, não se preocupou em distinguir as noções de parentesco e afinidade, deixando de demarcar as importantes diferenças quanto aos efeitos jurídicos entre os dois conceitos.

O vínculo de parentesco abrange o parentesco de linha reta (ascendente e descendente), que é ilimitado, e o parentesco em linha colateral ou transversal. O parentesco na linha colateral, diferentemente do parentesco na linha reta, não é ilimitado. Ele ecorre da descendência de um único tronco comum, sem que exista relação de ascendência e descendência entre parentes.

Cumpre destacar que o artigo 332 do Código Civil de 1916 dispunha que: .o parentesco é legítimo ou ilegítimo, segundo procede, ou não, de casamento; natural, ou civil, conforme resultar de consangüinidade, ou adoção.

É de se ponderar que a inclusão da expressão .outra origem, em substituição ao termo adoção, traz uma nova classificação para as relações de parentesco. Além do parentesco natural e da adoção, temos relações de parentesco entre pessoas que não têm essas formas de vínculo, como, por exemplo, o que ocorre quando se lança mão de técnica de reprodução assistida heteróloga (vide art. 1.597, V).

Atualmente se consagram novos valores referentes ao vínculo de filiação, nos quais ganha contorno e conteúdo a idéia de que a paternidade e a maternidade não são apenas relações jurídicas, ou meramente biológicas, sendo fundamental a presença do afeto nas relações paterno-filiais.

Segundo o ilustre Professor Luiz Edson Fachin, a disciplina jurídica das relações de parentesco entre pais e filhos não atende, exclusivamente, quer valores biológicos, quer juízos sociológicos. É uma moldura a ser preenchida, não com meros conceitos jurídicos ou abstrações, mas com vida, na qual pessoas espelham sentimentos. Fachin nega um conceito unívoco de paternidade, revelando, através do significado plural das relações paterno-filiais, a ampliada dimensão e relevância da nova tendência do direito de família.

Têm-se, assim, no art. 1.593 do novo Código, elementos para a construção de um conceito jurídico de parentesco em sentido amplo, no qual o consentimento, o afeto e a responsabilidade terão papel relevante, numa perspectiva interdisciplinar.

Assim, em razão de uma série de fatores sociais, econômicos e jurídicos, o macro princípio da dignidade humana fecundou o novo Direito de Família, de sorte surgirem corolários seus como os princípios da paternidade responsável e da afetividade, pois “o afeto não é fruto da biologia”, 7 mas antes de um emaranhado de sentimentos que geram efeitos sociais que não podem ser desprezados pelo direito, a “parentalidade socioafetiva” ou, na inspiradora lição de JOÃO BATISTA VILLELA, “desbiologização da paternidade”.( PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Teoria da afetividade: do Brasil para o mundo (entrevista). In: Boletim IBDFAM, n. 16, ano 2, ago./set. de 2002, p. 3.).

O princípio da afetividade “não é petição de princípio, nem fato exclusivamente sociológico ou psicológico”( LOBO, Paulo Luiz Netto. Princípio jurídico da afetividade na filiação. In: PEREIRA, Rodrigo Cunha (coord.). Anais do II congresso brasileiro de direito de família: a família na travessia do milênio. Belo Horizonte: IBDFAM/OAB-MG/Del Rey, 2000, p. 245-253), tendo, portanto, fundamento constitucional originário na dignidade humana (CRFB/88, art. 1º, III) e na previsão do reconhecimento das espécies de entidades familiares (CRFB/88, art. 226, § 4º), da proteção à criança e ao adolescente (CRFB/88, art. 227) e da igualdade entre os filhos (CRFB/88, art. 227, § 6º).

O afeto talvez seja apontado, atualmente, como o principal fundamento das relações familiares. Mesmo não constando a palavra afeto no Texto Maior como um direito fundamental, podemos dizer que o afeto decorre da valorização constante da dignidade humana.

No que tange a relações familiares, a valorização do afeto remonta ao brilhante trabalho de João Baptista Vilella, escrito no início da década de 1980, tratando da desbiologização da paternidade. Na essência, o trabalho procurava dizer que o vínculo familiar seria mais um vínculo de afeto do que um vínculo biológico. Assim, surgiria uma nova forma de parentesco civil, a parentalidade socioafetiva, baseada na posse de estado de filho.

Sobre a valorização desse vínculo afetivo como fundamento do parentesco civil, ensina Paulo Luiz Netto Lôbo: “O modelo tradicional e o modelo científico partem de um equívoco de base: a família atual não é mais, exclusivamente, a biológica. A origem biológica era indispensável à família patriarcal, para cumprir suas funções tradicionais. Contudo, o modelo patriarcal desapareceu nas relações sociais brasileiras, após a urbanização crescente e a emancipação feminina, na segunda metade deste século. No âmbito jurídico, encerrou definitivamente seu ciclo após o advento da Constituição de 1988. O modelo científico é inadequado, pois a certeza absoluta da origem genética não é suficiente para fundamentar a filiação, uma vez que outros são os valores que passaram a dominar esse campo das relações humanas. Os desenvolvimentos científicos, que tendem a um grau elevadíssimo de certeza da origem genética, pouco contribuem para clarear a relação entre pais e filhos, pois a imputação da paternidade biológica não substitui a convivência, a construção permanente dos laços afetivos.

O biodireito depara-se com as conseqüências da dação anônima de sêmen humano ou de material genético feminino. Nenhuma legislação até agora editada, nenhuma conclusão da bioética apontam para atribuir a paternidade ao doador anônimo de sêmen. Por outro lado, a inseminação artificial heteróloga não tende a questionar a paternidade e a maternidade dos que a utilizaram, com material genético de terceiros. Situações como essas demonstram que a filiação biológica não é mais determinante, impondo-se profundas transformações na legislação infraconstitucional e no afazer dos aplicadores do direito, ainda fascinados com as maravilhas das descobertas científicas. Em suma, a identidade genética não se confunde com a identidade da filiação, tecida na complexidade das relações afetivas, que o ser humano constrói entre a liberdade e o desejo” (Princípio jurídico da afetividade na filiação. Disponível em: <http://www.ibdfam.com.br/public/artigos.aspx?codigo=109).

Como nós, entende o autor que o princípio da afetividade tem fundamento constitucional, particularmente na dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da CF/1988), na solidariedade social (art. 3º, I, da CF/88) e na igualdade entre filhos (art. 5º, caput, e art. 227, § 6º, da CF/1988). Assim, em síntese, conclui o renomado autor alagoano, um dos fundadores do Instituto Brasileiro do Direito de Família (IBDFAM), que: “Impõe-se a distinção entre origem biológica e paternidade/maternidade. Em outros termos, a filiação não é um determinismo biológico, ainda que seja da natureza humana o impulso à procriação. Na maioria dos casos, a filiação deriva-se da relação biológica; todavia, ela emerge da construção cultural e afetiva permanente, que se faz na convivência e na responsabilidade.

No estágio em que nos encontramos, há de se distinguir o direito de personalidade ao conhecimento da origem genética, com esta dimensão, e o direito à filiação e à paternidade/maternidade, nem sempre genético. O afeto não é fruto da biologia. Os laços de afeto e de solidariedade derivam da convivência e não do sangue. A história do direito à filiação confunde-se com o destino do patrimônio familiar, visceralmente ligado à consangüinidade legítima. Por isso, é a história da lenta emancipação dos filhos, da redução progressiva das desigualdades e da redução do quantum despótico, na medida da redução da patrimonialização dessas relações”. (Princípio jurídico da afetividade na filiação, cit.)

A defesa da aplicação da paternidade socioafetiva, hoje, é muito comum entre os atuais doutrinadores do Direito de Família. Tanto isso é verdade que, na I Jornada de Direito Civil, promovida pelo Conselho da Justiça Federal sob a chancela do Superior Tribunal de Justiça, foi aprovado o Enunciado nº 103, com a seguinte redação: “O Código Civil reconhece, no art. 1.593, outras espécies de parentesco civil além daquele decorrente da adoção, acolhendo, assim, a noção de que há também parentesco civil no vínculo parental proveniente quer das técnicas de reprodução assistida heteróloga relativamente ao pai (ou mãe) que não contribuiu com seu material fecundante, quer da paternidade socioafetiva, fundada na posse do estado de filho”.

Na mesma Jornada, aprovou-se o Enunciado nº 108, prevendo que: “No fato jurídico do nascimento, mencionado no art. 1.603, compreende-se à luz do disposto no art. 1.593, a filiação consangüínea e também a socioafetiva”. Em continuidade, na III Jornada de Direito Civil, idealizada pelo mesmo STJ e promovida em dezembro de 2004, foi aprovado o Enunciado nº 256, pelo qual “a posse de estado de filho (parentalidade socioafetiva) constitui modalidade de parentesco civil”.

Na jurisprudência nacional, o princípio da afetividade vem sendo muito bem aplicado, com o reconhecimento da parentalidade socioafetiva, predominante sobre o vínculo biológico.

“NEGATÓRIA DE PATERNIDADE - ADOÇÃO À BRASILEIRA - CONFRONTO ENTRE A VERDADE BIOLÓGICA E A SOCIOAFETIVA - TUTELA DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA - PROCEDÊNCIA - DECISÃO REFORMADA

1. A ação negatória de paternidade é imprescritível, na esteira do entendimento consagrado na Súmula nº 149/STF, já que a demanda versa sobre o estado da pessoa, que é emanação do direito da personalidade. 2. No confronto entre a verdade biológica, atestada em exame de DNA, e a verdade socioafetiva, decorrente da adoção à brasileira (isto é, da situação de um casal ter registrado, com outro nome, menor, como se deles filho fosse) e que perdura por quase quarenta anos, há de prevalecer à solução que melhor tutele a dignidade da pessoa humana. 3. A paternidade socioafetiva, estando baseada na tendência de personificação do direito civil, vê a família como instrumento de realização do ser humano; aniquilar a pessoa do apelante, apagando-lhe todo o histórico de vida e condição social, em razão de aspectos formais inerentes à irregular adoção à brasileira, não tutelaria a dignidade humana, nem faria justiça ao caso concreto, mas, ao contrário, por critérios meramente formais, proteger-se-ia as artimanhas, os ilícitos e as negligências utilizadas em benefício do próprio apelado.” (Tribunal de Justiça do Paraná, Apelação Cível nº 0108417-9, de Curitiba, 2ª Vara de Família, DJ 04.02.2002, Relator Accácio Cambi)

“AÇÃO NEGATÓRIA DE PATERNIDADE - ADOÇÃO À BRASILEIRA - PATERNIDADE SOCIOAFETIVA

O registro de nascimento realizado com o ânimo nobre de reconhecer a paternidade socioafetiva não merece ser anulado, nem deixado de se reconhecer o direito do filho assim registrado. Negaram provimento.” (Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, RO-Proc. 00502131-70003587250, , Relator Rui Portanova, Origem Rio Grande, Data 21.03.2002)

Para nós, o princípio da afetividade é importantíssimo, pois quebra paradigmas, trazendo a concepção da família de acordo com o meio social. É sobre o princípio da função social da família que passamos a expor, para encerrar este breve trabalho.

“A igualdade entre filhos biológicos e adotivos implodiu o fundamento da filiação na origem genética. A concepção de família, a partir de um único pai ou mãe e seus filhos, eleva-os à mesma dignidade da família matrimonializada. O que há de comum nessa concepção plural de família e filiação é a relação entre eles fundada no afeto.”( LOBO, Paulo Luiz Netto. Princípio jurídico da afetividade na filiação. Jus Navigandi, Teresina, a. 4, n. 41, maio 2000. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=527).

Outro tipo de entidade familiar, apreciada pelo STJ, tutelada pelo art. 226 da Constituição, é a comunidade constituída por parentes, especialmente irmãos. Veja-se o seguinte julgado (REsp 159.851/SP, DJ 22.06.1998):

“EXECUÇÃO - Embargos de terceiro. Lei nº 8.009/90. Impenhorabilidade. Moradia da família. Irmãos solteiros.

Os irmãos solteiros que residem no imóvel comum constituem uma entidade familiar e por isso o apartamento onde moram goza de proteção de impenhorabilidade, prevista na Lei nº 8.009/90, não podendo ser penhorado na execução de dívida assumida por um deles.”

Assim, a entidade familiar tem como finalidade unir todos os entes sanguineos, bem como aqueles unidos pela sócio-afetividade, o que torna igualitário as relações estabelecidas no seio da família e sucessões.